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A produção e consumo desenfreado de proteína animal e as pandemias, de Amanda Goncalves Machado

16 setembro 2021

A produção e consumo desenfreado de proteína animal e as pandemias, de Amanda Goncalves Machado

Antes de qualquer coisa, gostaria de ressaltar que este não é um post demonizando o consumo de carne ou necessariamente focado no veganismo. Meu foco aqui será explorar a relação da indústria da proteína animal para com as pandemias passadas, a pandemia presente e as possíveis futuras que atingirão a humanidade. 

Com a eclosão da Covid-19 e a posterior especulação (já questionada)  de sua origem relacionada ao “mercado úmido” de Wuhan, os olhos do mundo se voltaram ao papel de mercados de animais para consumo, revoltados com a possibilidade do consumo indevido da carne de um pangolim ter levado a um desastre de proporções tão grandes quanto a pandemia de Covid-19. 

Apesar da elevada atenção midiática dada ao tópico após a disseminação do Sars Cov 2, não foi a primeira vez que a produção em massa, comercialização ilegal e consumo desenfreado de proteínas animais impulsionou o surgimento de um surto de saúde pública. Na obra “Pandemias, saúde global e escolhas pessoais”, pesquisadores brasileiros demonstram a relação entre a produção e consumo de animais em surtos como o do Ebola, H1N1 e HIV. Segundo os dados levantados, o Ebola provavelmente teria surgido da caça de morcegos, o HIV da caça de macacos e o contágio pelo H1N1 teria sido facilitado pela suinocultura em massa. 

O amplo contato entre seres humanos e animais, via caça, criação e/ou consumo, favorece ambientes propícios para o surgimento de novas doenças e para a propagação de patógenos desses animais para a espécie humana. No caso da Covid-19, sua eclosão também seguiu a mesma suspeita de origem. Ao comentar sobre a existência de mercados de animais vivos para venda – como o de Wuhan –  a cientista Cynthia Paim,  aponta: “A existência desses ambientes aumenta muito a probabilidade de recombinação genética e o surgimento de uma cepa que tenha capacidade de transmissão sustentada na população humana, como está acontecendo agora”.

Com múltiplos exemplos de emergências de saúde pública conectados aos hábitos alimentares humanos, a possibilidade de eclosão de futuras pandemias se torna cada vez mais preocupante. Ainda segundo Cynthia Paim, a criação intensiva de animais para a indústria alimentícia, com suas altas densidades de animais em ambientes fechados, eleva a propensão a infecções e contribui muito para a disseminação de patógenos. O maior problema, então, não necessariamente está no consumo de carne em si, mas sim nos sistemas de produção e venda deste tipo de alimento. Contudo, são os hábitos alimentares pessoais que impulsionam essa indústria com elevadas demandas, abrindo caminhos ou, no mínimo, deixando de evitar meios propícios ao surgimento e propagação de novos patógenos à espécie humana. Dia após dia, elevamos a possibilidade de novas pandemias. 

A população vem reduzindo seu consumo de carne nos últimos anos – segundo relatório da ONU sobre o mercado global alimentício, 2020 contou com um dos menores níveis de consumo de carne do século XXI, tanto por medo de contaminação quanto pelo aumento da conscientização acerca do sistema produtivo agropecuário. Entretanto, ainda vivemos longe de uma realidade com sistemas de produção sustentáveis, corretamente regulados e inspecionados. A população global como um todo também não conta com informações completas sobre a origem das proteínas animais que consomem; uma parcela significativa mal conta com segurança alimentar. Como cobrar desta população, então, disciplina e consciência ao consumir carne? Como pressionar para mudar os sistemas de criação de animais para meios mais sustentáveis e equilibrados ao meio-ambiente? Precisamos difundir informação, educar a população em seus hábitos alimentares e incentivar e possibilitar mudanças no consumo. O mundo não precisa “veganizar-se” de um dia para o outro necessariamente, mas precisamos, sim, repensar nossas escolhas ao comer e produzir carne o mais rápido possível para que evitemos, adiemos ou, ao menos, amenizemos as probabilidades de eclosão de novas pandemias.

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Daniel Rodrigues Freire Mota
2 anos atrás

Texto super importante que alia o alcance de hábitos alimentares saudáveis com questões sanitárias. Apesar de não ser o foco principal do texto, é importante nos atentarmos aos excessos e erros acometidos na indústria agropecuária, na medida que cruelmente reproduz um sistema de reprodução e engorda de rebanhos para o consumo da população, e em destaque a brasileira, que atualmente possui, de forma generalizada, condições mínimas financeiras, para não dizer inexistentes, para tal consumo.
Além dessa premissa, a evitabilidade de doenças pandêmicas é essencial quando aliada ao futuro de hábitos alimentares. Explorada também no documentário presente na Netflix denominado “Pandemia”, um ponto relevante é a futura obrigatoriedade desses hábitos que possuam menos carne em seu consumo, visto que é cada vez mais notório a diminuição da disponibilidade de água potável que se torna essencial na manutenção de grandes rebanhos. Implicitamente, o vegetarianismo/veganismo se torna uma prática cada vez mais demandada, em prol da própria sobrevivência da sociedade humana. Isso, ou um futuro cada vez mais perto da aniquilação.

AMANDA GONÇALVES MACHADO
2 anos atrás

Com certeza, Daniel! Outros documentários do Netflix também linkados a esse elo entre alimentação, meio ambiente e saúde no geral são os famosos “Cowspiracy” e “Seaspiracy” – todos muito interessantes também (apesar de bem impactantes e “agressivos” no posicionamento).

Deisy Ventura
2 anos atrás

Bom post, Amanda. Poderia linkar também com Rob Wallace https://apublica.org/2021/04/rob-wallace-agronegocio-e-a-juncao-perfeita-de-circunstancias-para-surgimento-de-novas-epidemias/ ou, por outra linha, com Peter Singer https://www.fronteiras.com/entrevistas/peter-singer-filosofia-e-uma-maneira-de-viver Os dois pontos de vista ajudariam a superar esta mais aparente do que real dicotomia entre a dimensão individual e a dimensão coletiva.

AMANDA GONÇALVES MACHADO
2 anos atrás
Reply to  Deisy Ventura

Muito obrigada pelos links, professora! As duas linhas comentadas são bem interessantes realmente 🙂

Ammanda Costa
2 anos atrás

Texto interessante, Amanda! Concordo muito com o trecho do artigo que aponta que o problema não está no consumo de carne em si, mas na cadeia produtiva desses alimentos. Acredito que seja muito difícil trazer informações relacionadas ao veganismo e vegetarianismo a parcelas muito significativas da população mundial (que, como apontado no texto, ainda vivem em insegurança alimentar), e por isso a mudança nesse caminho pode ser mais lenta. Mas, além disso, acredito que também seja possível criar transformações na cadeia produtiva em si, com medidas como maiores regulações sobre a área. Acho que várias propostas podem ser formuladas e um debate bem produtivo pode ser levantado nesse sentido!

AMANDA GONÇALVES MACHADO
2 anos atrás
Reply to  Ammanda Costa

Concordo super, Ammanda. E espero que vejamos, num futuro próximo, debates mais abrangentes sobre o tema, que considerem também a necessária redução de desigualdades na segurança alimentar da sociedade.