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A pós-verdade encontra a pandemia: lidando com dados em tempos de crises sanitárias, de Nathanael Rolim Duarte

15 setembro 2021

A pós-verdade encontra a pandemia: lidando com dados em tempos de crises sanitárias, de Nathanael Rolim Duarte

Crises sanitárias nunca vêm desacompanhadas: elas são sempre seguidas de outros grandes desafios econômicos, sociais e ou políticos que, em maior ou menor grau, agravam a situação causada pela crise de saúde pública. A pandemia de COVID-19, no entanto, apresentou um novo tipo de desafio que, até o momento, nenhuma outra crise sanitária tinha causado em tamanha magnitude: a Infodemia.

De forma alguma a pandemia de COVID-19 inaugurou o fenômeno da desinformação nas Emergências de Saúde Pública Internacionais: durante a eclosão internacional do Ebola, por exemplo, houve toda sorte de formas de desinformação misturadas a intenções reais de informar: desde notícias falsas sobre formas de propagação do vírus, até notícias bem-intencionadas de grandes jornais que apenas serviram para propagar medo e ódio aos infectados. Sell, Hosangadi e Trotochaud (2020) demarcam como notícias falsas sobre o Ebola chegaram a impressionantes níveis nas redes sociais.

Outras crises de saúde pública históricas, como a Peste Negra e a Sífilis, também foram marcadas pela desinformação e por consequências catastróficas de notícias falsas, que resultaram em massacres, grupos étnicos expulsos de territórios nacionais e discriminação generalizada, como alerta Poos (2020).

A pandemia de COVID-19, no entanto, inovou pelo volume da desinformação. Em decorrência do aumento da facilidade de se transmitir notícias e conteúdos via internet, da disponibilização de novas formas de se alterar conteúdos legítimos (como os chamados deep fakes), e da disponibilização descuidada de dados públicos, até mesmo os mais bem intencionados podem – algum momento – ter contribuído com a desinformação.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define “Infodemia” (junção de “informação” e “endemia”) como o “excesso de informações, incluindo informações falsas e errôneas, em meios digitais ou físicos durante o surto de uma doença” (WHO, tradução minha). Esse excesso, de acordo com García-Saisó et al. (2021), acaba dificultando que pessoas tenham acesso a informações confiáveis na hora de tomar decisões informadas sobre assuntos – sejam eles relacionados à crise de saúde ou não.

Quando tratamos de infodemia e desinformação, o fenômeno mais comum que temos em mente são as notícias falsas. Desde o início da pandemia, diversos países tiveram de lidar com gigantescos volumes de fake news envolvendo desde a origem do novo coronavírus até possíveis efeitos colaterais absurdos da vacina. Esse fenômeno, inclusive, levou 132 países a assinarem uma declaração se comprometendo a combater a infodemia e as informações falsas, almejando criar uma rede global de verificação de notícias.

Lidar com notícias falsas não é um fenômeno simples, e a enorme quantidade de informações circulando torna uma checagem de todos os fatos e notícias virtualmente impossível. Barcelos et al. (2021) demonstraram que, no Brasil, por exemplo, até alguns meios de informações considerados “seguros” propagaram algumas notícias falsas. 

Entretanto, o fenômeno da desinformação na infodemia não está ligado apenas às notícias falsas. Crises sanitárias como a pandemia do novo coronavírus são notórias por produzirem quantidades absurdas de dados e informações de todos os tipos. Zielinski (2021) apresenta que, somente em 2020, o crescimento de preprints em periódicos médicos cresceu mais de 400%. O descuido com esses dados e informações pode resultar em situações de desinformação tão graves quanto as notícias falsas.

Um exemplo neste sentido foi um episódio recente que ocorreu no jornal Folha de S. Paulo, que em 02 de julho publicou uma matéria indicando que milhares de pessoas no país teriam tomado vacinas vencidas; após uma checagem, no entanto, comprovou-se que isso foi apenas uma interpretação errônea de dados não tratados disponibilizados pelo Ministério da Saúde. O estrago, no entanto, já havia sido feito, e a retratação da matéria não teve o alcance e impacto que a notícia original teve.

Esses dados, muitas vezes públicos, embora sejam essenciais para que a população possa exercer o devido accountability das ações dos governos, muitas vezes são tratados de maneira inadequada e não cuidados por autoridades no assunto. Se o equívoco de um jornalista ao lidar com dados oficiais pode ter efeitos tão poderosos dentro de uma sociedade, imagine o estrago que uma política bem intencionada mas mal direcionada pode trazer.

Autoridades públicas, de uma maneira geral, ainda são muito inexperientes em lidar com dados, e a coleta e divulgação desse material sem o devido cuidado pode ter consequências futuras catastróficas. Além disso, apesar do esforço internacional para conter notícias falsas, ainda há pouco empenho em garantir uma normalização dos dados produzidos por entidades oficiais e um tratamento adequado desses dados. 

O passo adotado pelos países que assinaram a declaração se comprometendo a combater a desinformação é importante, e se destaca por inclusive indicar uma plataforma das Nações Unidas como fonte confiável de informações, mas a declaração de pouco adianta se ela não for seguida por ações. Além disso, os países precisam se esforçar, acima de tudo, para garantir uma qualidade mínima dos dados públicos disponibilizados para a população, a fim de aumentar a transparência e o accountability por parte da sociedade civil. 

Referências

BARCELOS, Thainá do Nascimento de; et al. Análise de fake news veiculadas durante a pandemia de  COVID-19 no Brasil. Rev Panam Salud Publica, v. 45, pp. 65 – 73. DOI: 10.26633/RPSP.2021.65. Disponível em: <<https://iris.paho.org/handle/10665.2/53907>>. Acesso 23/08/2021.

GAMBA, Estêvão; RIGHETTI, Sabine. Registros indicam que milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra Covid; veja se você é um deles. Folha de S. Paulo, São Paulo, 02 jul. 2021. Online. Disponível em: <<https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/07/milhares-no-brasil-tomaram-vacina-vencida-contra-covid-veja-se-voce-e-um-deles.shtml>>. Acesso 23/08/2021.

GARCÍA-SAISÓ, Sebastián; et al. The COVID-19 Infodemic. Rev Panam Salud Publica, v. 45, pp. 1 – 2. DOI: 10.26633/RPSP.2021.56. Disponível em: <<https://iris.paho.org/handle/10665.2/54452>>. Acesso 23/08/2021.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Infodemic. Health Topics. Online. Disponível em: <<https://www.who.int/health-topics/infodemic>>. Acesso 23/08/2021.

POOS, Lawrence R. Lessons from past pandemics: Disinformation, scapegoating, and social distancing. Brookings Techtank, Online. Disponível em: <<https://www.brookings.edu/blog/techtank/2020/03/16/lessons-from-past-pandemics-disinformation-scapegoating-and-social-distancing/>>. Acesso 15/09/2021.

SELL, Tara Kirk; HOSANGADI, Divya; TROTOCHAUD, Marc. Misinformation and the US Ebola communication crisis: analyzing the veracity and content of social media messages related to a fear-inducing infectious disease outbreak. BMC Public Health, v. 20, n. 550. DOI: 10.1186/s12889-020-08697-3. Disponível em: <<https://bmcpublichealth.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12889-020-08697-3>>. Acesso 15/09/2021.ZIELINSKI, Chris. Infodemics and infodemiology: a short history, a long future. Rev Panam Salud Publica, v. 45, pp. 40 – 48. DOI: 10.26633/RPSP.2021.40. Disponível em: <<https://iris.paho.org/handle/10665.2/53850>>. Acesso 23/08/2021.

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Andrea dos Santos
2 anos atrás

Nathanael, a tecnologia nos trouxe avanços imensuráveis, porém a pandemia nos mostrou como somos reféns do imediatismo midiático. E as mídias, na ânsia de obterem a audiência desejada, divulgam notícias sem dados suficientes, muitas vezes, com chamadas sensacionalistas durante o intervalo comercial de sua programação, gerando confusão e dificultanto as ações de vigilância.

Maria Eduarda Ogassawala Canever
2 anos atrás

Gostei muito da reflexão! Acho que faz total sentido pensarmos nos efeitos da alta e imediata veiculação de informações para o combate à pandemia, não só pela disseminação de fake news, mas também pela ótica de formulação de políticas públicas. Mais uma vez prevalece a ideia errônea de criar políticas de “bala mágica” para combater a pandemia. Essas políticas, embasadas e legitimadas por dados constantemente atualizados, ainda falham em atingir as causas da pandemia e muitas vezes ignoram os efeitos não óbvios da crise sanitária. A legitimação por meio de dados é, no fim do dia, um recorte de análise.

Deisy Ventura
2 anos atrás

Excelente post, Nathanael, muito obrigada! completo, dinâmico, associando ótimas referências acadêmicas a exemplos práticos. Podes ir adiante em outro post discutindo os limites da “opinião” diante de uma emergência de saúde – apenas uma sugestão.

Drielly de Souza Lima
2 anos atrás

A perspectiva apresentada sobre a inabilidade dos gestores de políticas em lidar com a quantidade cada vez maior de dados disponíveis é extremamente preocupante uma vez que a tendência é que a quantidade de “informação” a disposição dessas autoridades siga crescendo. Assim, a pertinência e a urgência desse tema é muito significativa e o seu texto conseguiu enquadrar isso muito bem, Nathanael!

Lúcia Puglia
2 anos atrás

Muito legal conhecer esse conceito de “Infodemia”, Nathanael! Obrigada por ter trazido essa discussão à tona. Acredito que uma das maiores preocupações que mantemos é justamente essa fragilidade. Ainda que houvessem alguns gargalos e questões a serem respondidas durante a pandemia, alguns apontamentos já eram fatos científicos, como o uso de máscara e distanciamento social para barrar a transmissão exponencial do vírus. E, mesmo assim, foram questionados e distorcidos pela política negacionista vigente.
Muito me preocupa, inclusive, parlamentares endossando o discurdo antivax, mesmo aqueles envolvidos com saúde. Não faltaram parlamentares da causa oncológica sendo contra a exigência de vacinação, por exemplo, mesmo quando pensamos nos baixos índices de vacinação do HPV que levam a um alto número de casos de câncer de colo do útero. Além disso, estamos sofrendo grandes regressos a doenças já controladas, como mostra essa notícia de baixa cobertura vacinal de polio: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/baixa-cobertura-vacinal-contra-a-poliomielite-no-brasil-preocupa-especialistas/.
Infelizmente, o negacionismo avança enquanto a esperança retrocede. Resta-nos acompanhar o que ainda está por vir!