A Peste e o Estrangeiro: a estigmatização do Outro durante crises de saúde, de Gabriel Alegria dos Santos Reis

11 outubro 2021

A Peste e o Estrangeiro: a estigmatização do Outro durante crises de saúde, de Gabriel Alegria dos Santos Reis

A pandemia do COVID-19 está atrelada a um aumento de ataques sinofóbicos pelo Ocidente. Estudos apontam um crescimento exponencial de atos de violência e discriminação contra as populações amarelas nos EUA, acompanhado por significativo impacto econômico sobre seus negócios (Tessler, Choi e Kao, 2020; Kim e Shah, 2020; Zhang, 2021). Especulações sobre a o papel da China na disseminação do vírus, incluindo a teoria de que a pandemia teria origem em uma arma biológica chinesa, ganharam grande repercussão não só no âmbito popular, mas também na imprensa (Zhang, 2021). Mesmo altas autoridades políticas, como o ex-presidente Donald Trump (Kim e Shah, 2020) e o senador Eduardo Bolsonaro (Bolsonaro, 2020), engajaram com uma narrativa de culpabilização de Beijing e em ataques contra populações etnicamente chinesas.

O fenômeno faz parte de uma longa história da criação de bodes-expiatórios durante crises de saúde. Dos judeus na Peste Negra da Europa Medieval aos chineses durante a COVID-19, essa narrativa perpassa séculos de discriminação nas mãos da mídia, da ciência e da maioria, recaindo de forma violenta sobre membros de comunidades já estigmatizadas e marginalizadas (Tessler, Choi e Kao, 2020; Kim e Shah, 2020; Joffe e Haarhoff, 2002; Farmer, 1996; Eamon, 1998; Markel e Stern, 2002; Eichelberger, 2007). Corpos aparentemente estrangeiros, em particular, são frequentemente feitos de bodes-expiatórios no Norte Global – na medida em que se atrela à ideia de saúde uma noção de modernidade e civilização, latinos, asiático e africanos são associados à barbaridade, sujeira e atraso (Crawford, 1994; Eichelberger, 2007; Markel e Stern, 2002; Eamon, 1998; Farmer, 1996; Joffe e Haarhoff, 2002; Zhang, 2021).

O fenômeno coloca em oposição as noções do “Eu” e do “Outro”. Constrói-se entre os dois uma muralha de diferenças culturais e tecnológicas, que busca atribuir ao Outro a responsabilidade pela doença, ao engajar em uma série de comportamentos inadequados, e ao Eu uma posição de superioridade e modernidade (Crawford, 1994; Farmer 1996; Joffe e Haarhoff, 2002; Eamon, 1998; Eichelberger, 2007). Essa muralha permite ao Eu uma sensação de segurança contra essa ameaça invisível e incontrolável, localizando-a no outro, no estrangeiro (Crawford, 1994; Kim e Shah, 2020; Joffe e Haarhoff, 2002). Como Crawford (1994, p. 1356) afirma: “O doente não é apenas tornado responsável por seu male, mas também tornado diferente. A pessoa que está momentaneamente livre da doença é então reassegurada, ela não é como aqueles estão doentes.”

Além desse sentimento de proteção, autores também apontam para uma necessidade de restabelecer controle. Encarados por uma situação ameaçadora e virtualmente indomável, atribuir a responsabilidade ao Outro permite ao Eu uma maior sensação de domínio sobre a situação (Rothschild et al., 2012; Eamon, 1998; Eichelberger, 2007). Diferente de vírus, bodes-expiatórios podem ser facilmente identificados, compreendidos e o riscos que eles impõem, neutralizados (Rothschild et al., 2012).

Apesar do processo ser antigo, a mídia de massa ocupa papel central no seu funcionamento contemporâneo. Capaz de reproduzir ideias de forma inigualável, ela transformou de maneira irreversível a forma como entendemos e lidamos com doenças, ao servir de ponte de tradução – ou distorção – entre o mundo leigo e o científico (Joffe e Haarhoff, 2002; Markel e Stern, 2002). Longe da construção de uma democracia discursiva ou um embate de ideias, Joffee e Haarhoff (2002) apontam como a imprensa busca confirmar concepções já existentes entre seus públicos: refletir suas visões sobre o Eu e responsabilizar o Outro por elementos que o ameacem. Portanto, desde o final do século XIX, a imprensa se tornou veículo para a reprodução de narrativas epidemiológicas violentas contra imigrantes, principalmente aqueles entendidos como fora do universo da branquitude (Zhang, 2021; Joffe e Haarhoff, 2002).

A adoção ampla de mídias sociais tornou esse processo ainda mais acelerado e perigoso. Enquanto a disseminação de discursos discriminatórios e notícias falsas pela internet já havia sido identificado durante a Epidemia de SARS de 2002-2004, o crescimento de sua capilaridade aumentou o seu impacto de maneira ainda pouco mensurada (Eichelberger, 2007; Zhang, 2021; Tessler, Choi e Kao, 2020). Mesmo assim, como Zhang (2021) aponta, existem dados o suficiente para mostrar as implicações reais da normalização de retórica xenofóbica online, incluindo no que tange o crescimento de ataques violentos contra minorias étnicas.

Não podemos, entretanto, culpabilizar somente a mídia e o público pela reprodução de discursos xenofóbicos no que tange a proliferação de doenças. Também a própria academia toma papel relevante nesse processo, não só num passado da eugenia e de miasmas, mas até hoje. Farmer (1996) aponta como a elite acadêmica norte-americana e as autoridades de saúde dos Estados Unidos engajaram em ampla especulação pseudocientífica, mobilizando discursos exoticistas e racistas, para alocar sobre os haitianos a responsabilidade pela chegada da epidemia do HIV/AIDS nos EUA, durante a década de 1980. Ele demonstra como argumentações com pouca evidência científica receberam respaldo, ligando o vírus ao Haiti na base de hipóteses envolvendo ritos vudu, ingestão de sangue de animais sacrificados, consumo de carne de gato e ritos homossexuais. Hoje em dia, as pesquisas apontam que, ao contrário, o vírus teria chegado ao país caribenho justamente a partir dos EUA.

Não podemos ignorar o impacto desse tipo de discurso. Existem os já citados: discriminação, violência, assédio e perda econômica para os grupos estigmatizados. Mas, além disso, como Eichelberger (2007) aponta, o fenômeno pode gerar perigosa normalização da permanência de doenças entre grupos estigmatizados, o investimento para trata-las se justificando somente caso arrisquem atingir o Norte Global. Quando a mudança cultural é apresentada como solução para a saúde, a atenção está sendo divergida da pobreza, da falta de saneamento e da sistêmica deterioração de sistemas de saúde. Trabalhar para a melhoria da saúde a nível global também deve ser trabalhar para superar a criação de discursos violentos e estigmatizantes do universo epidemiológico.

Referência:

BOLSONARO, E. Quem assistiu Chernobyl vai entender o q ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura… 18 de mar. de 2020. Twitter: @BolsonaroSP. Disponível em: <https://twitter.com/BolsonaroSP/status/1240286560953815040>. Acesso em: 10 de out. de 2021.

CRAWFORD, R. The boundaries of self and the unhealthy other: reflections on health, culture and AIDS. Social Science & Medicine, v. 38, n. 10, p. 1347-1365, mai. 1994.

EAMON, W. Cannibalism and Contagion: Framing Syphilis in Counter-Reformation Italy. Early Science and Medicine, v. 3, n. 1, p. 1-31, 1998.

EICHELBERGER, L. SARS and New York’s Chinatown: The politics of risk and blame during an epidemic of fear. Social Science & Medicine, v. 65, n. 6, p. 1284-1295, set. 2007.

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JOFFE, H.; HAARHOFF, G. Representations of far-flung illnesses: the case of Ebola in Britain. Social Sciences & Medicine, v. 54, n. 6, p. 955-969, mar. 2002.

KIM, G.; SHAH, T. When Perception Are Fragile But Also Enduring: An Asian American Reflection on COVID-19. Journal of Humanistic Psychology, v. 60, n. 5, p. 604-610., 2020.

LYNTERIS, C. Yellow Peril Epidemic: The Political Ontology of Degeneration and Emergence. In: BILLÉ, F.; SOREN, U. (org.). Yellow Perils: China Narratives in the Contemporary World. Honolulu: University of Hawaii Press, 2018.

MARKEL, H.; STERN, A. The Foreignness of Germs: The Persistent Association of Immigrants and Disease in American Society. The Milbank Quarterly, v. 80, n. 4, p. 757-788, 2002.

ROTHSCHILD, Z.; LANDAU, M.; SULLIVAN, D.; KEEFER, L. A Dual-Motive Model of Scapegoating: Displacing Blame to Reduce Guilt or Increase Control. Journal of Personality and Social Psychology, v. 102, n. 6, p. 1148-1163, abr. 2012.

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ZHANG, D. Sinophobic Epidemics in America: Historical Discontinuity in Disease-related Yellow Peril Imaginaries of the Past and Present. Journal of Medical Humanities, v. 42, n. 1, p. 63-80, fev. 2021.

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Larissa Capovilla
3 anos atrás

Gabriel, seu texto toca em um aspecto fundamental da saúde global que precisa ser levado urgentemente em consideração: os processos de racialização. No caso da xenofobia, que você eloquentemente expôs no seu texto, esse processo se refere à associação de determinados corpos à doença e à sua constituição como ameaça para esse “eu” fictício, o que é, infelizmente, um fenômeno bastante palpável e próximo da realidade. O que esse processo revela de forma mais ampla e velada, mais além, é a atribuição diferenciada de valor a corpos distintos – é a possibilidade de dizer “que vidas são passíveis de luto e quando”, nas palavras de Butler. E a estrutura de governança da Saúde Global perpetra, em certo grau, essa distribuição racializada do valor da vida, em especial quando destina seu enfoque ao combate de ameaças específicas cuja urgência pode estar particularmente associada a diferentes influências dentro de organizações como a OMS. A negligência em relação aos determinantes sociais da saúde, que você também denuncia em seu texto, pode também ser associada a esse processo.