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A paradiplomacia brasileira na pandemia: entre a emergência humanitária e a disputa por poder, de Bianca de Oliveira

17 novembro 2021

A paradiplomacia brasileira na pandemia: entre a emergência humanitária e a disputa por poder, de Bianca de Oliveira

A política externa brasileira, sobretudo a partir da redemocratização, foi pautada por uma atuação pragmática, de apoio e participação ativa no multilateralismo e notória contribuição para a agenda de saúde global. Com a posse do presidente Jair Bolsonaro em 2019, contudo, as relações exteriores do Brasil distanciaram-se de seu legado, seguindo a tendência isolacionista da extrema direita. A mudança da imagem brasileira foi patente no contexto da pandemia do covid-19, com a postura da chancelaria de Ernesto Araújo de negação da crise sanitária e da construção de um inimigo nacional: a China. O gigante asiático, principal parceiro econômico do Brasil, destaca-se na produção de tecnologia, dominando o setor de equipamentos médicos. Nesse cenário, o Brasil enfrenta uma delicada situação diante de sua dependência no apoio externo para a superação da pandemia.

Com a vacância de lideranças no âmbito internacional, a paradiplomacia protagonizou as relações internacionais, em especial quanto a acordos e compras de tecnologias de saúde da China. Classificada como a ação de entes subnacionais de relacionar-se com demais Estados independentemente do governo federal, a paradiplomacia é uma constante da política brasileira, principalmente em cidades globais. Até 2019, entretanto, sua atuação era em boa comunicação ao Itamaraty. Após a mudança no MRE, a paradiplomacia tornou-se desarmoniosa ao governo federal, intentando resguardar o que restou da antiga atuação brasileira. Além da mudança da política externa, o artigo “Conflitos entre governos subnacionais e o governo federal durante a pandemia de COVID – 19: o Estado de São Paulo e a Compra da Coronavac” da revista de Relações Internacionais da UFGD “Monções”, aponta outras duas razões para tal segmentação: A ineficácia e negligência do governo federal em conter a pandemia; e a competição entre Bolsonaro e governadores para a eleição presidencial em 2022 (LOPES; RODRIGUES, 2021).

A postura do governo Bolsonaro contribuiu sistematicamente para o acirramento da pandemia no Brasil a partir da implementação do neoliberalismo na saúde (VENTURA; BUENO, 2021). O discurso de contrapor o isolamento social ao crescimento econômico é parte da tese de “imunidade de rebanho” adotada pelo presidente, cientificamente comprovada ineficaz. A incitação ao descumprimento do isolamento, a negação da gravidade da doença, a distribuição de falsos remédios milagrosos, o desmantelamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e o desincentivo à industrialização e pesquisa são mecanismos utilizados pelo governo para superar a pandemia com custos financeiros mínimos, independentemente dos custos humanos (FREY, 2020).

Tais condutas complementam-se ao posicionamento externo de dificultar acordos internacionais que forneceriam insumos para o enfrentamento da crise, resultando, entre outros efeitos, no atraso para a aquisição de vacinas. Essa inação do Estado diante da emergência humanitária abriu espaço para a ação da paradiplomacia. Em abril de 2020, o governo de Flávio Dino (PSB – MA) comprou respiratórios e equipamentos médicos diretamente com a China no episódio que ficou conhecido como “Operação de Guerra”, após a troca comercial ter sido três vezes interrompida, uma vez pelo próprio governo federal. Ainda, em março de 2021 foi aprovado a PL 534/21, que permitia a compra de vacinas da Covid – 19 por estados, municípios e instituições privadas. Tal autorização foi um novo impulso para a ação paradiplomática dos estados na compra direta com laboratórios estrangeiros.

Em um processo de realizar acordos sem interrupções federais, o governo de São Paulo de João Dória (PSDB), em junho de 2020 e o instituto Butantã fecharam uma parceria com a empresa chinesa Sinovac Life Science para realizar pesquisas para a produção de uma vacina. A Coronavac é o produto dessa parceria, que, não por acaso, foi largamente utilizada como meio de autopromoção pelo governador João Dória.  Nesse panorama, ressalta-se o segundo fator para o acirramento das tenções entre federal e estadual: a competição política para presidência em 2022. De fato, os três governantes com maiores participações na paradiplomacia, João Dória (SP), Flávio Dino (MA) e Eduardo Leite (RS), demonstraram interesse em se candidatar à presidência em 2022. A compra de vacinas gera uma visibilidade em âmbito nacional para governadores, sendo uma excelente forma de iniciar precocemente a suas campanhas políticas (AMORIM, 2020). Ainda, em vista de campanha conjunta dos políticos em 2018, a propagação da Coronavac como resultado direto do governador João Dória é uma forma de distanciar sua imagem da de Jair Bolsonaro após a perda de apoio do último na pandemia.

Sendo assim, as ações de Bolsonaro de sistemático agravamento da crise humanitária e ausência de protagonismo internacional abriram espaço para a atuação dos entes subnacionais brasileiros, de forma a enfatizar as relações exteriores na mídia e inseri-las mais ativamente no jogo de propaganda política. A paradiplomacia, nesse cenário, passa a compor um novo capítulo da política externa brasileira de tensão entre esfera estadual e federal, tornando – se especialmente relevante para a disputa presidencial em 2022.

Referências:

ABRÃO, Rafael; RODRIGUES, Vanessa; DA SILVA, Vitor; DOS SANTOS, Vitor. O Itamaraty da extrema-direita e a atuação de entes subnacionais na manutenção das relações Brasil-China. Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil, [S. l.], p. única, 24 ago. 2021. Disponível em: https://opeb.org/2021/08/24/o-itamaraty-da-extrema-direita-e-a-atuacao-de-entes-subnacionais-na-manutencao-das-relacoes-brasil-china/. Acesso em: 29 out. 2021.

Alvarenga, Alexandre Andrade et al. Desafios do Estado brasileiro diante da pandemia de COVID-19: o caso da paradiplomacia maranhense. Cadernos de Saúde Pública [online]. 2020, v. 36, n. 12 [Acessado 14 Novembro 2021] , e00155720. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0102-311X00155720>. Epub 11 Jan 2021. ISSN 1678-4464. Acesso em: 03 nov. 2021

AMORIM, Silvia. De olho em 2022, João Doria tem entre seus desafios aplacar taxa derejeição. In: O Globo, 06/12/2020. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/brasil/deolho-em-2022-joao-doria-tem-entre-seus-desafios-aplacar-taxa-de-rejeicao-24783681>Acessado em: 03 de novembro de 2021.

DOLCE, Julia. Geopolítica da pandemia: “A verdade é que hoje o Brasil é um pária internacional”, diz especialista em saúde global: Para Deisy Ventura, cenário internacional mostra que suposta dicotomia entre proteção da saúde pública e proteção da economia, defendida por Bolsonaro, é “grande mentira”. Agência Pública, [S. l.], p. única, 27 abr. 2020. Disponível em: https://apublica.org/2020/04/geopolitica-da-pandemia-a-verdade-e-que-hoje-o-brasil-e-um-paria-internacional-diz-especialista-em-saudeglobal/?fbclid=IwAR27NHU34_QppKNgkUIf1Jbg2QuEqMpE6roPlX_eqN3e87GOWUVfB7mRfoI#Link1. Acesso em: 3 nov. 2021.

ESTADÃO CONTEÚDO. A operação de guerra no Maranhão para driblar a Receita e ter respiradores: Voo, que passou pela Etiópia e Aeroporto de Guarulhos antes de chegar ao estado, tinha a missão de não ter os equipamentos confiscados pelo governo federal. Exame, [S. l.], p. única, 17 abr. 2020. Disponível em: https://exame.com/brasil/a-operacao-de-guerra-no-maranhao-para-driblar-a-receita-e-ter-respiradores/. Acesso em: 3 nov. 2021.

FALCÃO, Márcio; VIVAS, Fernanda. STF autoriza estados e municípios a comprar vacinas contra Covid se União descumprir plano: Julgamento foi feito em plenário virtual, no qual ministros inserem votos em sistema eletrônico. Ação foi apresentada pela OAB, e STF tomou decisão por unanimidade. G1, [S. l.], p. única, 23 fev. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/02/23/stf-tem-maioria-para-permitir-que-estados-e-municipios-comprem-vacinas-contra-covid-19-se-uniao-descumprir-planejamento.ghtml. Acesso em: 3 nov. 2021.

FREY, Isabel, “‘Herd Immunity’ is Epidemiological Neoliberalism”, The Quarantines, 19 mar. 2020, Disponível em:  https://thequarantimes.wordpress.com/2020/03/19/herd-immunity-is-epidemiological-neoliberalism/

LOPES MARRA DE SOUSA, Ana Tereza; RODRIGUES, Gilberto M.A. Conflitos entre governos subnacionais e o governo federal durante a pandemia de COVID-19: o Estado de São Paulo e o caso da vacina CoronaVac. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, Dourados, v. 10, n. 19, p. 36-69, out. 2021. ISSN 2316-8323. Disponível em: <https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/moncoes/article/view/13335/8180>. Acesso em: 03 nov. 2021. doi:https://doi.org/10.30612/rmufgd.v10i19.13335.

PEDROSO, Luís. O Protagonismo da Paradiplomacia e o descaso do Itamaraty. Empower, consultoria em análise política, [S. l.], p. única, 28 jan. 2021. Disponível em: https://www.empowerconsult.com.br/single-post/o-protagonismo-da-paradiplomacia-e-o-descaso-do-itamraty. Acesso em: 29 out. 2021.

PORTAL DO GOVERNO (São Paulo). Governamental. SP recebe maior remessa de matéria-prima para vacina do Butantan: Carga com 8,2 mil litros de insumos permite produção local de 14 milhões de doses e desembarcou nesta quinta no Aeroporto de Guarulhos. São Paulo. SP, [S. l.], p. única, 4 mar. 2021. Disponível em: https://www.saopaulo.sp.gov.br/noticias-coronavirus/sp-recebe-maior-remessa-de-materia-prima-para-vacina-do-butantan/. Acesso em: 3 nov. 2021.

ROCHA, Ronaldo. Flávio Dino muda discurso e movimenta cenário para 2022: Chefe do Executivo voltou atrás e afirmou que deixará governo em início do próximo ano para poder disputar a eleição. O Estado, [S. l.], p. única, 2 set. 2021. Disponível em: https://imirante.com/oestadoma/noticias/2021/09/02/flavio-dino-muda-discurso-e-movimenta-cenario-para-2022/. Acesso em: 3 nov. 2021.

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