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A crise na saúde pública vai além da Covid-19, de Lúcia Puglia

18 outubro 2021

A crise na saúde pública vai além da Covid-19, de Lúcia Puglia

A partir de março de 2020, o Sistema Único de Saúde (SUS) sofreu um grande impacto causado pela pandemia do vírus Covid-19. Com a necessidade de realocação de recursos, para suprir as demandas imediatas por diagnóstico e internações, uma série de represamentos foram realizados quanto a outras enfermidades. 

Segundo os dados de mortalidade no Brasil de 2019, as 5 maiores causas de morte relacionadas à enfermidades foram: neoplasias malignas, doenças isquêmicas do coração, doenças cerebrovasculares, influenza e pneumonia e, por fim, diabetes mellitus. Para a seguinte análise, serão analisados os impactos no diagnóstico e tratamento das doenças oncológicas, cardiovasculares, cerebrovasculares, respiratórias e crônicas não transmissíveis. Compreender as consequências dessa crise no SUS é entender os desafios que ainda estão por vir – a crise após a crise -, a longo prazo e de forma ainda mais generalizada. 

Quando ao setor oncológico, é possível utilizar o Radar do Câncer 2021, criado pelo Instituto Oncoguia e baseado em dados do DATASUS e do Canal Ligue Câncer entre março a dezembro de 2020 para mapear a situação do setor oncológico durante a pandemia em relação a 2019. Atualizado pela última vez no dia 20 de junho, traz dados alarmantes, como a queda de  48,37% no número de exames de mamografia com finalidade de rastreamento e a redução de 50,03% na queda no número de exames citopatológicos com finalidade de rastreamento. A situação vigente alarma os especialistas do setor, uma vez que o Brasil já tinha como estimativa para o triênio de 2020 a 2022 625 mil novos casos de câncer a cada ano.

No tema das doenças cardiovasculares, mesmo antes da pandemia, a Diretriz de Prevenção Cardiovascular de 2019 já apontava que o principal problema enfrentado era o aumento constante de pacientes, não a queda na taxa de mortalidade. Com a crise mundial, houve um abandono de tratamentos clínicos ou cirúrgicos, pausa nas atividades físicas, alimentação desequilibrada, dentre outros fatores de saúde que levaram a piora nessa situação. A Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo recomenda políticas relacionadas à aferição do colesterol em jovens; o uso de tecnologias de diagnóstico precoce; ampliação da vacinação como prevenção ao infarto, além de campanhas de conscientização sobre nutrição saudável e prática de atividades físicas.

Quanto às doenças cerebrovasculares (AVC), uma pesquisa recente da World Stroke Organization (WSO) feita em 2020 apontou queda global de mais 60% nos atendimentos de AVC, devido ao isolamento social e o medo de serem infectadas. No Brasil, ainda que existam desigualdades regionais, é preciso garantir o tratamento. A Academia Brasileira de Neurologia enfatiza que a retirada de coágulos de forma antecipada faz com que haja uma minimização de danos irreversíveis, gerando um aumento na chance de sobrevivência e autonomia individual. Além disso, cuidados preventivos, como alimentação adequada e  prática de atividade física, garantem a minimização dos riscos, mas também foram afetados pela pandemia. Têm se estudado o aumento de números de casos de AVC em jovens e em pacientes com covid-19, mesmo sem sintomas respiratórios, e é previsto que o vírus aumenta o risco da doença cerebrovascular, o que evidencia a necessidade de acompanhamento constante e testagem em massa.

Uma situação similar é relatada pela “Declaração conjunta sobre doenças crônicas não transmissíveis e COVID-19”, autoria de um grupo de trabalho formado por Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Organização dos Estados Americanos (OEA) e Banco Mundial, que aponta que, em nível mundial, 15 milhões de pessoas morrem dessas doenças entre as idades de 30 e 69 anos anualmente, sendo que 85% desses óbitos ocorrem em países emergentes como o Brasil. No país, vive-se uma epidemia dessas doenças, como diabetes com impacto principalmente para a população mais pobre, o que é evidenciado pelos 64,4% dos mortos por Covid-19 que tinham alguma comorbidade.

Já as doenças respiratórias tiveram uma mudança distinta das demais, com resultados positivos. Devido ao isolamento social, uso de máscaras e hábitos de higiene pessoal, houve queda expressiva dos casos. Segundo o Infogripe (Fiocruz), o número de ocorrências de síndromes respiratórias graves causadas pelo vírus sincicial respiratório (VSR) caiu 76,4% entre janeiro e agosto de 2020 quando comparado à média dos últimos três anos nos mesmos meses. Os casos de gripe também despencaram em 62,2%. Entretanto, os efeitos após a pandemia podem ser adversos. Com a redução da capacidade pulmonar, as doenças pulmonares graves podem ficar mais frequentes a partir de então, causando um impacto significativo no SUS.

Portanto, sob este cenário, é preciso que planos de ação sejam feitos para lidar com o represamento e novos desafios a serem enfrentados em cada área terapêutica, principalmente quando a maior parte da população brasileira depende da saúde pública para diagnosticar e tratar de enfermidades como essas e tantas outras. 

Referências bibliográficas

A epidemia de doenças crônicas que agrava o impacto da covid. ACT – Promoção da Saúde, 29 out. 2020. Disponível em <https://actbr.org.br/post/a-epidemia-de-doencas-cronicas-que-agrava-o-impacto-da-covid/18693/>. Acesso em 10 out. 2021.

Alerta sobre doenças crônicas durante a pandemia da COVID-19. Fiocruz, 02 out. 2020. Disponível em: https://www.bio.fiocruz.br/index.php/br/noticias/1997-alerta-sobre-doencas-cronicas-durante-a-pandemia-da-covid-19. Acesso em 10 out. 2021.

Brasil terá 625 mil novos casos de câncer a cada ano do triênio 2020-2022. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Fevereiro, 2020. https://www.inca.gov.br/noticias/brasil-tera-625-mil-novos-casos-de-cancer-cada-ano-do-trienio-2020-2022.

Cuidados para evitar covid levaram à queda de outras doenças respiratórias. Portal UOL, 11 out. 2020. https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/agencia-estado/2020/10/11/cuidados-para-evitar-covid-levaram-a-queda-de-outras-doencas-respiratorias.htm. Acesso em 7 out. 2021.

Doenças isquêmicas do coração foram a maior causa de morte no Brasil em 2019. Portal UOL, 16 out. 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/10/16/isquemia-cardiaca-foi-a-doenca-que-mais-matou-no-brasil-em-2019-diz-estudo.htm. Acesso em 5 out. 2021.

FERREIRA, J. F. M. Veja Saúde, São Paulo, 29 set. 2021. Disponível em: https://saude.abril.com.br/blog/guenta-coracao/o-retorno-de-uma-velha-pandemia-que-nunca-passou/. Acesso em 10 out. 2021.

Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Coordenação de Prevenção e Vigilância. Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero / Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Coordenação de Prevenção e Vigilância. Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede. – 2. ed. rev. atual. – Rio de Janeiro: INCA, 2016.

MS/SVS/CGIAE – Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM.  Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/obt10uf.def. Acesso em 5 out. 2021.

Pandemia: levantamento global aponta queda de mais de 60% nos atendimentos de AVC. Academia Brasileira de Neurologia, 5 jun. 2020. Disponível em: https://www.abneuro.org.br/post/pandemia-levantamento-global-aponta-queda-de-mais-de-60-nos-atendimentos-de-avc. Acesso em 16 out. 2021.

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Radar do Câncer – exames e tratamentos na pandemia. Equipe Oncoguia, 8 mar. 2021. http://www.oncoguia.org.br/conteudo/radar-do-cancer-exames-e-tratamentos-na-pandemia/14332/42/. Acesso em 5 out. 2021.

SUBRAMANIAM, K; GOULART, A. C.; WANG, Y. P. Doenças crônicas não podem ser esquecidas durante a pandemia . Veja Saúde, São Paulo, 2 set. 2020. Disponível em:

https://saude.abril.com.br/blog/com-a-palavra/doencas-cronicas-nao-podem-ser-esquecidas-durante-a-pandemia/.Acesso em 10 out. 2021.

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Karla Vialta
2 anos atrás

Muito bom o texto Lu! Me fez lembrar do meu próprio, no qual discorri sobre alimentos ultraprocessados e seu impacto na Saúde Pública, já que infelizmente nosso modelo de produção e sistema alimentar tem forte relação com o desenvolvimento de algumas enfermidades citadas no seu texto, como diabetes ou doenças cardiovasculares. Nosso consumo desenfreado e crescente de alimentos pobres em nutrientes e baratos para produzir tem dificultado o acesso a alimentos positivos para a saúde e favorecido o desenvolvimento de diabetes, obesidade, desnutrição e alguns transtornos menos óbvios como doenças cardiovasculares, respiratórios e até depressão! E em muitos países esses alimentos são consumidos especialmente pelas classes mais pobres 🙁
Nossa cadeia produtiva tem super a ver com os sistemas de saúde, e um sistema alimentar mais sustentavel pode ajudar a desafogar serviços de saúde e diminuir a incidência das enfermidades que você citou