No começo de maio deste ano, Donald Trump obteve vitória importante na Câmara dos Estados Unidos: a aprovação do projeto de desmantelamento do Affordable Care Act, o “Obamacare”. Apesar de o formato final da lei que poderá revogar a anterior – sob nome de American Health Care Act – ser incerto por estar em trâmite “secreto” no Senado, alguns contornos já são visíveis. A expectativa geral é a de que milhões de norteamericanos não possuam entitlement à cobertura de saúde, especialmente os mais pobres, mulheres, idosos e aqueles que já possuem alguma doença identificada.
A reforma sanitária promovida por Trump não é uma tentativa isolada, já que outros países como Bélgica, Polônia e até mesmo o Brasil estão em vias de diminuir a prestação de serviços por parte do Estado (ou por entidades por ele financiadas). Apesar de muitas análises serem feitas sobre tal fenômeno, ligado à expansão do controverso conceito de cobertura universal da saúde, quase nenhuma fez uso da Filosofia como ferramenta.
Ao teorizar a dialética da obediência e desobediência, o filósofo francês Frédéric Gros propõe um interessante conceito de responsabilidade: a do fardo, o qual os seres humanos são convocados a carregarem. Dentro dos quatro sentidos desse tipo de responsabilidade, a infinita pode ser útil na problematização da atual reforma sanitária. Gros utiliza a obra “Ética e infinito”, de Emmanuel Lévinas, filósofo lituano e judeu que foi encarcerado na época do regime nazista, como ponto de partida.
Lévinas teoriza responsabilidade como uma espécie de obrigação para com o outro a partir do momento que esse outro desnuda sua face, sua miséria absoluta. Tal responsabilidade inclusive significa se tornar responsável por esse outro, mas o que está efetivamente em jogo é um comando de ação do outro para com aquele que o vê; em outras palavras, o ato da vista não é de contemplação, está inscrito no domínio da ação. Finalmente, o voyeur passa a ser aquele que pode e deve fazer tudo por aquele que desnudou a própria face.
No entanto, é necessário frisar que a ação imposta ao observador por aquele que desnudou a miséria, uma existência ela mesma contrária à própria ideia de humanidade, não deve ser um ato de caridade. Se assim o fosse, não seria um ato infinito como carregar um fardo, a saber, o combate à pobreza. A partir do momento que é feito o reconhecimento da miséria, não é mais possível se esquivar da responsabilidade de erradicar condições que a provocaram. Porém, filosofia e política aqui também se entrelaçam: quem define o que é a pobreza e miséria que comandam o observador a agir?
Por mais que o conceito de Lévinas se aplique primeiramente a uma relação entre duas pessoas, uma extrapolação para a relação entre Estado e cidadãos também é possível e válida de ser feita. Conforme dito anteriormente, os principais prejudicados pelo Trumpcare são justamente populações vulneráveis, a quem a cobertura de saúde não significa acesso à saúde e tampouco o entitlement a esse tipo de serviço. Essas populações têm seu direito à saúde negado por fazerem parte dos chamados “determinantes sociais da saúde”.
A reforma sanitária em curso nos Estados Unidos é uma afronta às convenções e à carta constitutiva da Organização Mundial da Saúde, pois impede que parte significativa dos norteamericanos possa gozar do mais elevado nível de saúde ao discriminar aqueles que não são jovens e provenientes das classes sociais abastadas. Além disso, a reforma faz parte de um retrocesso no tocante à observância do Direito Internacional, pavimentando um perigoso caminho rumo ao desmonte de sistemas nacionais de saúde, como já observado no Reino Unido e principalmente nos países afetados pela crise financeira de 2008.
Estudos focados na Grécia entre 2009 e 2015 mostram os efeitos nefastos das políticas de austeridade promovidas pela Troika na saúde do país. Apenas a título de exemplo, aumentaram os casos de novas infecções por HIV e doenças como malária e tuberculose voltaram a acometer parte significativa da população como resultados de cortes em programas de prevenção e tratamento de doenças. Os mesmos organismos financeiros que pregam a austeridade são também aqueles que, associados à indústria farmacêutica, defendem a cobertura universal da saúde como solução sanitária global. No entanto, apesar de mesmo a OMS apostar na cobertura universal como forma de realizar seu objetivo primeiro, muitos estudiosos duvidam que o direito à saúde avançará dessa forma.
Retomando a ideia de Gros e Lévinas, assim como seus dilemas éticos, fica patente a tentativa de irresponsabilidade por parte dos Estados e da própria OMS ao ignorar a realidade dos efeitos dos determinantes sociais na saúde, já que o rapport é apenas contemplativo ao invés de ser pautado pela alteridade. O fardo infinito do reconhecimento da miséria e pobreza e da efetiva realização do direito à saúde, infelizmente, parece continuar a ser carregado de forma individual.
Por Vivian Kawanami, graduanda da USP e aluna da disciplina Saúde Global
Links utilizados:
https://www.nytimes.com/2017/06/13/opinion/senate-hides-trumpcare-health-care-bill.html